julho 03, 2014

AGOSTINHO DA SILVA E PORTUGAL

AGOSTINHO DA SILVA E PORTUGAL

A VISÃO, O PROCESSO, O PROJETO E A MANIFESTAÇÃO.
por Carminda H. Proença

Artigo publicado na NOVA ÁGUIA Nº 13 - 1º semestre 2014, 
Revista de Cultura para o Século XXI


A VISÃO: "Homem Completo"


No vídeo “Agostinho da Silva, Ele Próprio”, gravado por António Escudeiro, e publicado em livro e DVD pela Ed. Zéfiro em Março de 2006, o filósofo afirma ao jornalista - para espanto deste e nosso - que esteve em diálogo com o Espírito Santo, seu interlocutor na gravação: "aquela câmara era o Espírito Santo".

Como ponto de partida para essa conversa, escolhe uma ideia que encontra nas reflexões do abade beneditino Joaquim de Fiore sobre o significado de tempo na conceção cristã das três pessoas da Trindade.
Pai, Filho e Espírito Santo são para Fiore idades coeternas, omnipresentes no Tempo - com T grande, da eternidade. Mas elas se manifestam também em cada tempo - com t pequeno, relativo, próprio da forma como apreendemos na nossa condição humana - como três eras sucessivas, correspondentes a três estados de consciência: a Era do Pai, a que se segue a Era do Filho, e depois desta a Era do Espírito Santo, que será a do pleno desenvolvimento do Homem completo, completamente consciente de quem é e agindo em conformidade com as qualidades do Espírito. 
Temendo que o entusiasmo das pessoas por esta terceira Era conduzisse a uma perda do prestígio da Igreja de Cristo, esta pressionou Fiore a desdizer-se e ele teve de abandonar a ordem por se recusar a fazê-lo, acolhendo-se junto de um grupo de franciscanos espirituais que também recusavam a recomendação do Papa no sentido de que os conventos procurassem acumular riquezas e se mantinham fiéis aos ideais fraternos do seu fundador. 
Agostinho da Silva enraíza na ideia das três Eras e nos ideais franciscanos as suas reflexões sobre a visão do Homem completo, de como é e de como age. Na sua vida, no seu exemplo e na sua palavra, o grande Professor procura ir mais além e ilumina o processo interno capaz de trazer a sua visão, à luz da nossa consciência. Revela-nos as linhas mestras do projeto para a manifestação do pleno desenvolvimento do Homem, incitando-nos como portugueses a vivê-lo e a irradiá-lo para o mundo.
O culto do Espírito Santo, tal como é praticado pelos portugueses, é para ele revelador desse projeto. Sublinha que o interesse pela concretização, bem característico do povo português, se revela no entusiasmo com que esse culto se espalhou em Portugal, desde que a Rainha Santa Isabel veio de Aragão para casar com D. Dinis, em 1282. Conhecedora dos ideais de Joaquim de Fiore e dos franciscanos espirituais, ela promove em Alenquer, no séc. 13, a 1ª festa do Espírito Santo como um culto popular. 
Lembra-nos Agostinho que o Espírito Santo é criação pura, portanto “instabilidade e inesperado” mas ao mesmo tempo diz que os portugueses anseiam antever “como” se organizará essa futura Idade.
Parece haver aqui uma contradição, uma ilusão, uma missão impossível. encoberta... Será esta contradição indicativa de uma nostalgia que tenta encontrar uma ordem racional no caos da pura criação ou trará essa aparente contradição à luz uma portuguesa capacidade de intuir, neste caso, a multidimensionalidade quântica em permanente movimento que parece ser a criação e onde todas as aparentes contradições convivem, por direito próprio, numa íntima e indissociável unidade diferenciada, no Tempo e no tempo?

O PROCESSO: "Conversão"

Será esta a Mensagem que Fernando Pessoa acredita podermos partilhar com o mundo, como a nossa mais profunda e verdadeira Identidade cultural e espiritual? A de acreditarmos que cada ser, cada grupo, cada cultura, seguindo a busca da sua identidade, da sua verdadeira natureza à luz do Espírito e agindo em conformidade com ela, esteja a cumprir-se, a si e ao mundo? A de acreditarmos no valor supremo da diversidade dos modos de manifestação de todas as identidades culturais e espirituais e da sua aceitação, da sua partilha amorosa e fraterna, no interesse de todos?
 Será esse olhar português enraizado nas nossas tradições e na nossa história, no pensamento e na escrita dos nossos mestres, nas nossas melhores realizações, que nos cabe afirmar como a nossa Identidade de sermos o tal "rosto da Europa" e com este olhar olharmos para o mundo e com ele sermos capazes de vislumbrar a 3ª Era, o advento do Homem completo?
Agostinho da Silva, tal como Camões e Pessoa assim o crêem. Com efeito existe um paralelismo entre a ideia das três Eras do tempo em Fiore e a teoria das três ideias de Portugal de Fernando Pessoa: ao Portugal enquanto construção da sua identidade territorial, seguiu-se a expansão para além dela, na aprendizagem do convívio com outras identidades territoriais, culturais e espirituais. Por fim, como bem explica Renato Epifânio no seu precioso escrito "Visões de Agostinho da Silva", Ed. Zéfiro em 2006, chegou a hora de manifestar o 3º Portugal, o Portugal indelimitado que difunde pelo mundo a ideia que cada um e todos sejam plenamente eles próprios e, assim, livremente se manifestem e fraternamente se aceitem e entreajudem.
Na forma como os portugueses concretizam simbolicamente a ideia de Fiore e dos franciscanos na Festa popular, encontra Agostinho o sentido de uma visão do universo como “criação contínua”, “incriado e criador”, e do Homem completo como “poeta que faz poemas e que é ele próprio poema”, ou seja, uma criação contínua também. Como aliás, ele próprio, se revela, na escola e na vida: Homem Poema espírito criativo, sempre imprevisível, desconcertante e desafiador.
No "entre" da visão e da manifestação, podemos assim vislumbrar uma espécie de zoom inter dimensional de consciência que nos permite viajar, boiar, bolinar, do tempo ao Tempo, unificando o espaço que vai da nossa realidade mais concreta e cheia de contradições até à infinita e eterna unidade do ser.
Ele reconhece em nós, portugueses, atributos que nos capacitam para vivermos esse processo, tecermos essa obra interna que ele nos propõe como caminho para a manifestação da Idade do Espírito Santo no mundo. Estará este puro ideal franciscano a querer reviver também agora com o Papa Francisco? É interessante lembrar que ele consagrou o Mundo à Senhora de Fátima de Portugal, no dia 13 de Outubro 2013.
Agostinho aponta aos portugueses um caminho de busca interna e de descoberta consciente da Alma, extensivo ao coletivo humano: trata-se, por isso, de fazer presente o Homem completo em cada aqui e agora, a partir de cada contexto onde a alma coletiva se vai manifestando. A sua ocupação permanente é apontar-nos caminhos que frutifiquem em realizações para o bem de todos.
Ele explica o entusiasmo dos portugueses pelo culto do Espírito como sendo uma representação do anseio mais profundo da velha Alma Portugal: a Saudade da completude do ser, incriado e criado, presença viva da eterna Origem.
Agostinho ensina que a nossa viagem terrena é também uma viagem interna de recordar um passado que é futuro.
É o processo individual, que por sua vez se torna coletivo e externo, se consciencializa e se foca na intenção de um projeto de manifestação, de ação e de realização concreta no mundo. É um trabalho permanente de transmutação interior, alquímica, do ego mais básico auto centrado para o eu cônscio de si mesmo e deste para a presença viva do Espírito que o habita e que, finalmente, descobre e aceita como a força criadora e impulsionadora, sua guia: O amor maior em ação em todos nós e que se manifesta de uma forma única em cada ser.
Todo este processo íntimo está em curso, devagar, humildemente, silenciosamente, interiormente buscando a manifestação, de forma persistente, inspirada e inspiradora, herança de Mulheres e Homens Grandes porque Crianças e Poemas tal como Agostinho, esforçados ”Descobridores”, que contam histórias vivas e vivos as dizem de geração em geração, como se a alma lhes reconheça a valia e lhes ordene imperativamente essa generosa e fraterna partilha, ilustrando tais histórias em atitudes e ações nas suas próprias vidas, e sabendo também iluminá-las nas vidas de todos.
Agostinho da Silva é uma Luz, um Farol, um Mestre, alguém que faz a Viagem de Vida a caminho do Homem completo e nos fala dela intuindo um destino que é o de todos. Ele nos mostra a sua Visão de um futuro que é também memória, na alma, do passado, sua Origem. Afirma que esta Visão é inata e está presente na criança enquanto ainda ser livre. Incita-nos a recuperar e conservar a sua memória viva e a redescobri-la nas sucessivas experiências da vida.
É uma aprendizagem na qual se revela Mestre. Egos aprendizes esquecidos de quem somos, ele nos conduz com segurança ao leme, na Viagem, pelas suas palavras, pelo seu exemplo, e nos aponta a direção certa, incitando-nos a prossegui-la.
Agostinho ensina-nos que é possível agir e realizar obra neste mundo em que vivemos, obra de almas abertas pelo toque do Espírito, unidas pela e na Presença eterna do Amor Maior, almas vivas e conscientes, ou seja, como diz, iluminadas, transparentes, translucidas, como as “mundas almas” de Camões. Diz ele que Camões usou a palavra "munda" como adjetivo para se referir às almas boas que não tenham nenhuma mancha, límpidas e puras e que poderão ascender ao Paraíso. Ou trazer o Paraíso à manifestação nas consciências dos homens...
Agostinho da Silva ensina aquela irreverência de não sermos de ninguém servos, nem sequer sobretudo de nós próprios, do nosso pequeno ego. Exorta-nos a despertar a consciência para a criança, para o poeta que sempre somos, que nunca verdadeiramente deixamos de ser: este é o processo interno que nos propõe considerando-o a única “conversão” que realmente podemos fazer: a de nós próprios.
Esta é uma grande lição deste grande Professor. Ele nos mostra que o propósito é viver e que viver é aprender e ensinar vivendo; ele nos mostra que professor e aluno são uma e a mesma coisa. Ele nos encoraja, nos encaminha e nos acompanha para a liberdade, a criatividade, a partilha fraterna, para a realização da Idade do Espírito na terra, para assumirmos com consciência a nossa própria realização de sermos Poema, de vivermos a própria criação em ação.

O PROJETO: "Programa de Futuro"

Nesse culto popular português, que tem como Imperador uma criança e culmina em fraterna partilha de pessoas livres, Agostinho vê simbolicamente três momentos essenciais, reveladores de “como” será organizada a vida dos homens na 3ª Idade:
 1º Ato da Festa: escolha do Imperador para governar o mundo
Quem melhor pode representar o Espírito Santo na terra? O povo português escolhe para reger o mundo novo, uma criança que o Padre coroa na Igreja como Imperador.
 O Menino Imperador, qual Menino Deus, remete-nos para a criança interna que somos chamados a manter viva: “o divino reapresentando-se ao mundo para que os homens entendam o divino pela maneira por que ele se comportava". Agostinho exorta-nos deste modo a comportarmo-nos como ele e assim sermos alunos e professores de Deus no Mundo.
Diz ele que a escolha de uma criança pelo povo se pode dever a três motivos:
 a) À capacidade de livremente imaginar “soluções para os problemas que atrapalham os adultos" e “de fazer perguntas para as quais as pessoas mais preparadas dificilmente encontram respostas adequadas”. Quer ele assim reforçar o papel da intuição relativamente à razão.
 b) À recuperação do enfoque franciscano no Presépio e no Jesus Menino, que se apresenta no mundo por obra do Espírito Santo Pessoa Amor.
 c) À recuperação do ideal beneditino de abrir as portas dos conventos a todos e a todos fraternamente acolher como se fossem o próprio Cristo disfarçado.
2º Ato da Festa: O Menino Imperador abre as portas da prisão local, libertando todos os presos.
Diz Agostinho que é isto para mostrar ao Mundo que na Idade do Espírito Santo, Idade plena do Mundo, não é preciso privar ninguém da liberdade porque não há mais guerra, pois não há mais carências nem dificuldades económicas que atinjam a humanidade.
Não há mais pressões como as que "a economia que existiu a partir do pecado original exerce, tal como a Bíblia refere: o aproveitamento do fruto da árvore (o alimento sabedoria) por alguns, excluindo outros, quando esse fruto devia pertencer a toda a humanidade e portanto não podia ser submetido ao poder de um só homem ou de um pequeno grupo de homens” … “só seria de todos se nunca fosse consumido por ninguém para um aproveitamento individual” em detrimento de outros.
3º Ato da Festa: o banquete gratuito
Todos os que vêm, consomem o que há, sem serem obrigados a pagar por isso.
Em suma:
Os portugueses declaram o culto do Espírito Santo como um “programa de futuro”, um futuro de um mundo ordenado e “dirigido pelas qualidades inatas na criança que não fossem destruídas pela educação…. ou pelas pressões económicas” e, portanto “a vida quotidiana devia ser gratuita e que, sendo as crianças levadas a ser crianças grandes, em plena liberdade, desse modo e não havendo pressões económicas sobre ninguém, deixaria de existir o crime, ou as prisões seriam apenas uma absurda e violenta recordação do passado”.

A MANIFESTAÇÃO no Mundo

Agostinho reconhece o caracter permanente e global do processo das três Eras, ou de conversão, como a própria vida em ação manifestada. Denuncia tudo o que bloqueia esse processo alquímico de busca do Homem universal completo e, à sua maneira muito própria, rebela-se e trabalha para desfazer os bloqueios, destruir os medos, os julgamentos, os velhos hábitos ilusórios, os valores errados.
Abre caminho para construirmos o novo enquanto manifestação das qualidades do Espírito: liberdade, criatividade, humildade, fraternidade e amor.
Considera que existe um potencial económico e de avanço tecnológico que pode libertar o Homem para a capacidade de criar, o qual deve ser usado para proporcionar a todos melhores condições de vida digna.
Por ora a concorrência especulativa global ainda impera e mantendo o jogo dos domínios e dependências, continua a viciar as relações. Com o avanço de uma verdadeira democracia de homens completos e livres não será mais possível uma atitude imperialista de comércio especulativo e desigual. A cooperação vencerá a concorrência e as trocas serão equilibradas e baseadas no interesse recíproco.
O culto do Espírito Santo retrata este sonho. Espalhou-se com as Descobertas pelo Brasil, Açores e daí para a Califórnia (Festa de San Diego), mas diminuiu muito com a invasão da península pela Europa no séc 16, que trouxe uma organização do capital “oposta à economia comunitária de Portugal e dos cumeros espanhóis” e também um tipo de governação centralista autocrático, completamente diferente do governo da coordenação que tinha sido sempre a forma de governo em Portugal: "coordenação pelos reis, coordenação pelos monarcas de um conjunto de municípios que só podemos classificar plenamente democráticos e republicanos” e onde a educação era feita livremente através da experiência: “havia poucas escolas e elas não eram frequentadas senão em casos muito especiais”.
Podemos reconhecer nos ensinamentos e práticas dos grupos iniciáticos, religiosos ou laicos, que marcaram desde sempre a origem e a história de Portugal enquanto nação, o fio condutor que preservou o sonho da “ligação” deste povo com a consciência da sua Alma. E nessa religação encontrarmos a vontade, o entusiasmo e a motivação para nos expandirmos de novo para dentro e para fora de nós mesmos, no processo alquímico de nos tornarmos, neste mundo, no Sonho que a Alma Sonha na Saudade da Unidade Amorosa do Ser.
Os sonhos eternos das almas são bem diferentes dos sonhos ainda velados e ilusórios da psique básica, feitos de energias bloqueadas, ligadas à experiência de densidade corporal. Mas, é também nesse mundo denso, que os sonhos da alma se terão de manifestar.
Agostinho da Silva ilumina, com o culto do Espírito Santo, o sentimento de que vivemos num espaço sagrado de comunhão de afetos: este sentimento cresce, torna-se a própria essência do ser de cada um e de todos, e d'Ele emerge todo o saber, todo o fazer, toda a manifestação, todo o Amor, tornamo-nos almas vivificadas na consciência da comum Presença Viva, que é Origem e Fim, que é Direção e Alimento.
Mas para que tal aconteça, salienta, é necessária uma envolvência de identidade cultural que acompanhe o desenvolvimento ao longo de todo o crescimento, de toda a vida. Daí a importância de um ensino que mantenha viva a criatividade conduncente à manifestação da visão no mundo dos homens, tornando-os cada vez mais Homens Poema.
Cultura é Identidade. Identidade cultural é uma energia de alma coletiva em ação, que a si mesmo se reconhece como tendo sonhos, atitudes e comportamentos comuns, na liberdade de todas as diferenças. Não se aprende por imposição ou curiosidade inteletual, antes se descobre e vem à consciência quando se procura a partir de dentro, pois pré existe à consciência que dela se toma, habitando a alma como a "tonalidade" própria de cada ser, de cada grupo.
Caminho certo para a resposta final à Saudade da Alma, base sólida para a realização da sua mais profunda aspiração: ser tocada pela Presença amorosa, harmoniosa, curadora, do Espírito, que a preenche de alegria e potência vital. Energia, vibração, alegria interna que se descobrem contagiantes e, devagar, devagarzinho, se podem espalhar como azeite em pano...
A Identidade cultural de Portugal e suas manifestações ao longo da História são bem reveladoras de que a Alma em Português – essa Identidade suprema - é uma Alma Velha, cada vez mais consciente de “O” Ser, mais sábia e mais capaz de “O” Fazer ou seja de criativamente “O” trazer à manifestação: trazer o Espírito Santo, O Amor Fraterno, à manifestação, de forma criativa e nisso ser exemplo para o mundo.
O processo é sempre o mesmo, seja ele vivido por dentro de cada um, seja ele vivido enquanto grupo, pois é O processo da Humanidade inteira que se expande na consciência do Ser. Reconhecê-l´O é reconhecermo-nos na nossa essência mais abrangente e mais profunda.
Esse processo é também o começo da manifestação do Espírito Criativo no mundo, do Homem completo, do “céu na terra”, do Criador na Criação, ambos Um Só. Tal como acontece com mestre e discípulo, à medida que a Criação se torna consciente do Criador deixa de haver separação: Criação e Criador são Um Só, O Amor Pessoa.
Agostinho faz isso na sua vida, por exemplo, criando a Universidade de Brasília a partir do nada. Insiste no fortalecimento da comunidade lusófona. Como diz Renato Epifânio, o Movimento Internacional Lusófono - MIL - tem um sentido de processo e a lusofonia interessa a todos, mas as coisas não se fazem de um momento para o outro; tem sido o tempo de curar as feridas da descolonização e as novas gerações são a esperança na continuação do caminho.

A IDENTIDADE: Ser Poema

O uso dos símbolos, que de geração em geração espelham a nossa identidade coletiva, a nossa alma de grupo, torna mais acessível a partilha desta visão, deste saber interno. A nossa identidade pessoal descobre-se como fazendo parte do caminho conjunto e nessa descoberta se vê a si mesma a uma nova luz.
Caminhando e partilhando, atravessando a Torre de Babel dos percursos, na senda dos ensinamentos de Mestres como Agostinho da Silva, temos a possibilidade de, fraternamente, nos descobrirmos e construirmos, numa Identidade lusófona que juntos somos, na plural diversidade cultural.
Cultura, ensina, não é algo abstrato e erudito ou só para alguns que muito estudaram.
Cultura para Agostinho é Identidade Cultural. Algo que vem de dentro, do nosso interior, da nossa alma, um saber que trazemos e lembramos quando olhamos a partir de dentro, para dentro da dimensão em que nos vemos viver, e para dentro do-  e dos - que connosco partilham.
Esse olhar feito de escuta, acorda as almas para o projeto que nos poderá conduzir à manifestação da nossa natureza lusófona no mundo.
Como direção, Agostinho aponta-nos uma vida interior de encontro com o Espírito, guia e referência da navegação de descoberta da transcensão de todas as dualidades separativas e conflituantes. Viagem a partir do Ser para o Estar e para o Fazer, unindo céu e terra, pois Um só na verdade são.
Descobrir as qualidades do Divino, do Espírito Santo, do Ser Espírito, e manifestá-las neste mundo pela partilha fraterna que traz a alegria nova que nos faz sentir “irmãos”, é o caminho e o exemplo que podemos e queremos continuar a dar ao mundo.
Uma comunhão de almas que se empenham na manifestação do Ser e assim, juntas, potencializam a energia, a vibração, a luz, o fogo, a vontade, a ação, no reconhecimento da vivência comum dessas qualidades e do seu poder de transcensão individual e coletiva: o poder de tornar os humanos mais Humanos. Todas essas qualidades do Ser Espírito estão contidas em uma só palavra: “Amor” ou, como gosto de dizer, consciência da “Presença Viva do Amor Maior" em nós e entre nós.
O processo é Um só e está presente em toda a Criação e em cada uma das criaturas de todos os reinos da natureza. É um processo contínuo, um bolinar da luz para a densidade e da densidade para a luz, do céu para a terra e da terra para o céu.
Cada vez é mais claro que a saída para a crise civilizacional que o mundo atravessa tem a ver com este caminho que Agostinho nos propõe manifestarmos.
Na sua última entrevista, dada em 1993, originalmente publicada no jornal sesimbrense Raio de Luz, e que pode igualmente ser lida na íntegra no
 website do Círculo António Telmo, Agostinho mostra-se muito cético sobre a União Europeia e diz-nos que a Europa vai desaparecer, diz que só faz sentido economicamente e que a união política não faz sentido porque não se funda em comunidades histórico linguísticas, nem em comunidades de afetos. Pelo contrário, acredita no valor civilizacional da comunidade lusófona porque é uma comunidade de afetos, com um passado de história, cultura e economia comuns. Por isso, defende também o passaporte e a cidadania lusófona.

- Projeto, utópico sonho? – interroga-se. E logo responde - Oxalá o seja pois amanhã é dos loucos de hoje.
Nesta mesma entrevista refere-se a Sesimbra (onde viveu e sempre esteve muito presente) num plano muito concreto. Aí ele vê espelhada a sua visão de Portugal realizado, não só com os atributos culturais da sua gente e as circunstâncias da sua identidade, a enorme beleza e harmonia da sua paisagem, mas também num outro plano em que as terrenas formas, cores, sons, cheiros, texturas, e sabores se combinam numa verdadeira alquimia com o Sol, o Mar e o Ar, tocando quem a ela se abre, dando à luz nas pessoas o sentimento e a palavra certas. Agostinho, António Telmo e muitos outros, em Sesimbra, o sentem também.
Nessa sua última entrevista Agostinho exorta os “Amigos” e todos os que o desejem, a assim “acordarem” e passarem de “múmias do deixa estar como está para ver como fica", para “ressuscitados”, levando a cabo a missão que Portugal não cumpriu ainda, de tornar fraterno o mundo:
“Portugal que se concentra em Sesimbra, que em Sesimbra tem seu perfeito resumo com litoral de alcantil e praia, com seu castelo e seu porto, suas encostas e seus plainos, seus ocres e seus verdes, seu arreigamento no concreto e sua pronta partida para as nuvens” e onde “devem surgir os primeiros núcleos em que o poder de criação que está oculto em Portugal desde o século XV desperte, ganhe forças e ajude a tirar Europa e América dos becos em que se meteram, os de se julgarem superiores, e ajude a tirar pretos, amarelos e vermelhos dos outros becos, os de se julgarem inferiores, em que a ciência volte a ser humana e de todos, como nas caravelas o foi”.
Assim como cultura para Agostinho é Identidade cultural, será para ele a espiritualidade, Identidade espiritual? Haverá uma identidade espiritual pessoal e de grupo? Ou será a Identidade espiritual una por natureza? Sim e não.... Provavelmente será una no destino último da viagem da descoberta….
Por ora aqui, podemos sentir a Alma em português. É um Alma velha, no sentido em que há muito vem fazendo a viagem na busca de quem é. Assim o revelam os poetas e os filósofos que se mantém firmemente ao leme em muitas dimensões, num admirável e profundo trabalho de travessia de muitos mares, de mergulho nas águas profundas e inefáveis do ser, através de uma imensa e valiosa herança registada em símbolos e rituais.
Herança valiosa que pode conduzir-nos ao destino certo. Simbolismos que são um somatório de registos de um caminho laboriosamente percorrido enquanto povo, no vai e vem do perto e do longe, no espaço e na diversidade de identidades culturais diferenciadas, de navegações sopradas por vários ventos… O vento do interesse egóico é um dos que mais árduas e difíceis torna as viagens e também ainda um dos mais fortes e omnipresentes na história atual da humanidade…
Precisamos aprender a discernir de onde vêm os ventos que nos conduzem pelos mares e marés, ora calmas ora tumultuosas, da nossa vida pessoal e coletiva. E para podermos discernir precisamos ter bussolas seguras, precisamos “abrir” amorosamente a alma à comunhão no Sopro do Espírito, em quem podemos confiar para chegarmos a bom porto.
Entre muitos ventos e tempestades não deixámos no entanto nunca de navegar, de buscar o destino mais além e, por isso, a Alma em português se apresenta como uma Alma de Síntese, de diáspora, “abrindo-se”, ao longo dos tempos e com avanços e recuos, a outros mundos, sem contudo se perder na sua identidade própria da munda alma. E Agostinho revela-nos que a nossa própria natureza é este mesmo “bolinar”.
Perguntamos: e no “Aqui”, e no “Agora”?
Filósofos portugueses revivem e continuam a procurar decifrar o saber acumulado e registado que nos revela as diferentes formas e fases de realização da Obra interna.
O caminho concretiza-se passo a passo, trazendo a visão da 3ª Idade do Espírito Santo à manifestação em cada homem: cada um em si e reconhecendo-a também amorosamente na verdadeira identidade de cada outro, todos diferentes e todos parte da unidade de Ser.
Olhamos o papel de Portugal neste agora, no seio da Europa e do Mundo e aparece-nos talvez como uma fase ao “nigredo” do processo alquímico de transcensão. Uma fase extremamente desafiante de perda dos contornos mais amplos da nossa Identidade, presa aos aspetos mais básicos da sobrevivência material.
A recuperação da verdadeira identidade é o desafio do Agora. A cultura e a língua são certamente e sempre um instrumento que lhe é inerente.
 A velha Alma Portugal anseia pelo reencontro da sua dignidade. Ela sabe que a obra ao nigredo faz parte da aprendizagem pessoal e coletiva, faz parte do processo e do caminho. E essa poderá ser uma menos negativa explicação para a nossa aparente passividade face à escravização a que estamos a ser sujeitos pelos ventos poluídos do primado do trabalho escravo por dinheiro, sem margem para livres expressão e escolha, e que sabemos - como em Abril de 1974 demonstrámos - só puderem conduzir ao beco sem saída da pobreza, da destruição, da fome e da morte.
A saudade que sentimos é a memória interna da plenitude fraterna do Ser: da "liberdade de não sermos escravos, de termos tempo livre e ocuparmo-nos em sermos fraternos no que fazemos".
A identidade da Alma Portugal pode encontrar-se tanto na contemplação do alentejano descansando à sombra do chaparro enquanto sente e comunga da natureza viva que o rodeia, como na peregrina que se recolhe e ora na Capelinha das Aparições em Fátima, como no pescador que mergulha na contemplação do azul que em cima e em baixo o rodeia até ao horizonte infinito, deixando-se embalar pelo marulhar ondulante das águas… Ele sabe como ninguém que o sopro da brisa irmã lhe dirá quando é a hora de partir e em que direção…
Nessas pausas atentas, a psique se silencia e a Alma encontra o seu movimento próprio de expressão criativa pela contemplação e aceitação do natural movimento interno que conduz à oração, à escrita, à pintura, à música, à dança, ao saber, à investigação, à invenção tecnológica, ao serviço, ao Amor, ao abraço com o Espírito.
Ao descobrirmos a Alma que nos habita e nos move, a Alma que somos, sabemos que ela É em todos nós, em toda a criação, e daí surge naturalmente o sentimento de irmandade, de amorosa fraternidade no qual Agostinho baseia a sua visão e o seu projeto.
Descobrir a Alma vivificada pelo Espírito faz parte integrante do processo de realização da sua visão que pode parecer-nos muito difícil e, paradoxalmente, de uma desconcertante simplicidade, ao centrar-se unicamente na descoberta e na partilha d'O Amor Novo, em contribuirmos com o nosso modo próprio de existir para a manifestação da nossa comum identidade cultural e espiritual.
O Amor Maior É, em cada um de nós e em todos nós. Manifesta-se como identidade espiritual, na Ilha dos Amores, Paraíso na Terra, Era do Espírito Santo…
Todo o Caminho que fazemos até essa descoberta é um meio e acontece frequentemente ficarmos dela separados pelo encantamento de algum apego que nos pára no percurso, nos leva de volta até a uma qualquer comodidade ou segurança bem conhecida. São pausas de reabastecimento, de integração do aprendido, que fazem também parte do processo, até pormos o projeto de novo em marcha, conduzidos e animados pela ânsia da nossa alma e pela força do espírito.
É nesse vai e vem entre mundos, da ilusão da dualidade à experiência da unidade de sermos, que vamos aprendendo a mergulhar na identidade do que realmente somos. É um longo percurso de vida até à descoberta da ilusão da separação como um caminho sem saída…
Quando a psique se abre e expande o seu horizonte interno, o eu descobre-se para além do ego básico, toma consciência do Si mesmo como Eu Interior.
Quando nos interrogamos sobre quem de dentro de nós olha, ouve, sente, fala e nos move, descobrimos que existe uma outra dimensão interna do nosso ser. Descobrimos a própria alma como algo vivo em nós, algo que por dentro nos anima, que É (existe) em Si mesmo e cuja realidade podemos tocar quando aprendemos a esvaziar-nos da agitação dos pensamentos e das emoções reativas da nossa psique básica, e nos distanciamos das ilusões redutoras que tendemos a fazer do mundo dos arquétipos.
É nesse profundo silêncio interno que a alma despida se revela em nós.
Segue-se a tomada de consciência da alma em Si mesma “o Eu sou Alma” ou algo se move, vibra e é vivo em mim.
A vivência interna verdadeiramente espiritual acontece quando a Alma se “abre” ao toque do Espírito, se rende incondicionalmente ao Poder e Ação do Espírito Santo Amor Pessoa e por Sua Guia se deixa conduzir e transformar. É uma “abertura”, uma “iniciação” que nos leva de experiência em experiência até à descoberta da identidade do Ser em nós: ao “eu sou criação e criador".
Esse estado de união revela-se como um estado amoroso de Ser. É um rasgar de véu que a nossa Alma assim aberta e unida ao Espírito, reconhece como um regresso a casa. Busca, que desde sempre a acompanhou, como um impulso primordial, ao encontro da sua verdadeira natureza.
Sabe ela também que não se transforma sozinha. Sabe que é parte de tudo e que todos estamos juntos no caminho. A viagem para o saber é a viagem para o ser, manifestando-se e descobrindo-se na ação.
A direção que Agostinho aponta torna-se assim uma bússola para os noonautas aprenderem que partindo do ser para o saber, estar e fazer, se estão a revelar e a oferecer, no melhor de si, a si mesmos e aos outros.
Este é o processo íntimo de transcensão alquímica que ilumina o projeto e o traz à manifestação.
Ser Poema é abrir a alma à memória deste seu mais profundo e inato anseio pelo toque do Espírito, por essa união mística, da qual nasce uma Força Maior que em nós se manifesta como A Fonte inspiradora.
Na Era da plenitude do Homem Alma completo, esse é O alimento vital e ao alcance de todos na plenitude dos seus frutos, que plenamente nos saciarão: a irradiação da luz do entendimento e da fé, a alegria doce da esperança realizada, a paz do amor partilhado.
Numa humilde participação nesta homenagem aos ensinamentos do Mestre, aqui deixo o Poema "Pedra Alta" que recebi na Praia de Sesimbra, sentada na pedra conhecida por esse nome porque é sempre banhada pelas marés mas nunca coberta de areia, e onde mais tarde vim a saber ter aparecido em tempos a cruz do Senhor Jesus das Chagas, que ficou como Padroeiro de Sesimbra.



“P E D R A   A L T A”
Na praia
sentada na Pedra Alta
perguntei ao meu corpo:

"O que é que em mim é Terra?"

...Senti meu peso
na dureza da rocha fria
e minha própria solidez
ao tocá-la...

"O que é que em mim é Água?"

O barulho exaltado
duma emoção ondulada
a quietude tranquila
dum silencioso marulhar,
no interior de mim senti...

"O que é que em mim é Ar?"

Por cima da minha cabeça
vi meu pensamento partir,
turbilhar...
Senti na brisa leve e fresca
longínquas mensagens
acariciando minha pele
em íntimo diálogo...

Finalmente perguntei

ao meu corpo
(ansiosa por senti-lo):

"O que é que em mim é Fogo?"

Um suave incêndio
de pronto flamejou
e ao calor do sol
numa tocha ardente
toda me tornei...

"De onde vem tanta força?

Tanto poder?" Perguntei.

Por trás das pálpebras cerradas

tudo, de repente, se ilumina!
E do centro de mim
-cadinho alquímico-
é meu coração
quem responde...

"Da substância prima

do solvente Universal
do Caos que tudo cria...
...O Amor..."